quarta-feira, novembro 29


Sabem aquela sensação limite em que temos várias coisas para fazer, cada um delas objectivamente fácil de fazer, mas que todas juntas nos transmitem uma sensação de nebulosidade no horizonte, toldando-nos os movimentos físicos e psíquicos, fazendo-nos mergulhar na apatia misturada com uma ansiedade muito grande?

É exactamente isso que estou a sentir durante o dia de hoje, e cada vez que faço o exercício de listar as tarefas, prioritizá-las e pegar na primeira, ao primeiro embate desanimo e volto ao estado geral de strogonoff mental.

Acho que estou a precisar de umas férias, ou quem sabe de um reboot ao meu peculiar cérebro…

terça-feira, novembro 28

Estória ou história, eis a questão...

Estava prestes a contar-vos uma história e parei logo nas primeiras linhas para de uma vez por todas desmistificar a utilização do termo história ou em alternativa o termo estória. Perdeu-se uma história (termo que a partir de agora passo a utilizar com mais orgulho e fundamento) e ganhou-se um pouco mais de bom português!
Aqui ficam as palavras do nosso amigo Cláudio Moreno, que não deve ter mais nada para fazer mas ainda assim o que faz faz bem.

A história de "estória"*
Cláudio Moreno**

Perdi a conta dos leitores que me perguntam sobre a famigerada estória. Uns querem saber se realmente existe essa distinção entre estória e história. Outros teriam ouvido que a palavra existiu outrora, mas hoje seria considerada arcaica. Há quem especule que estória tenha nascido de um erro de tradução. Quase todos perguntam se é uma distinção útil e necessária, ou se não passa de supérfluo balangandã. Peço perdão àqueles que fiz esperar, mas aqui vai minha resposta a todos.

Foi João Ribeiro, forte conhecedor de nosso idioma, quem propôs a adoção do termo estória, em 1919, para designar, no campo do Folclore, a narrativa popular, o conto tradicional, objeto de estudo dos especialistas daquela área. E não se tratava de inventar, mas sim de reabilitar (hoje usariam o horrendo resgatar...) uma forma arcaica, comum nos manuscritos medievais de Portugal. Era uma ingênua proposta, paroquial, nascida da inveja compreensível que causa a distinção story - history do Inglês; sem ela, alega o próprio Luís da Câmara Cascudo - para mim, um dos escritores que mais contribuíram para nossa língua -, não se pode entender frases como "Stories are not History", ou títulos como "The History of a Folk Story". Que o mestre Cascudo me perdoe: a intenção era boa, mas sem nenhum fundamento lingüístico.

Em primeiro lugar, a estória medieval não era um vocábulo diferente de história; era apenas uma das muitas variantes que se encontram nos textos manuscritos de nossos copistas, naquele tempo heróico em que a estrutura de nossa ortografia ainda lutava para sedimentar. Ali aparecem história, hestória, estória, istória, estórea (ainda não se usavam os acentos, que são de nosso século, mas não pude resistir). Da mesma forma, vamos encontrar homem, omem, omee (algumas vezes com til no primeiro e) e até ome. Nota-se que o emprego do "h" e das vogais ainda não estava estabilizado na escrita. Entretanto, já no séc. XVI - em Camões, por exemplo - a grafia de homem e história era a que é usada até hoje. Outras línguas da família latina, como o Espanhol e o Francês, também experimentaram essa variedade de formas para história, mas terminou prevalecendo a forma única (historia e histoire, respectivamente).

Em segundo lugar: grande coisa se o Inglês pode fazer a distinção entre story e history! E daí? Como o folclórico Napoleão Mendes de Almeida nos lembra, eles também distinguem entre can (poder, conseguir) e may (poder, no sentido legal e ético): "You can, but you may not" é uma rica frase em Inglês que só poderíamos traduzir com um aproximado "Você pode, mas não deve". Esse autor, que abominava estória, pergunta ironicamente: "Se curtos de inteligência foram nossos pais em não terem descoberto essa história de "estória", curtos de inteligência continuamos todos nós em não forjarmos distinção gráfica e fonética para "poder", para "educação", para "raio", para "oficial" e para outros vocábulos de formas diferentes em Inglês, como curtos de inteligência são todos os outros idiomas que têm palavras com mais de uma significação".

Dessa vez Napoleão bateu no prego e não na tábua. Uma olhada no meu Oxford e me dou conta que para nosso raio, por exemplo, o Inglês tem (1) ray (onde temos "raio de luz", "pistola de raios"), (2) radius (o "raio de um círculo") e (3) lightning (a "descarga elétrica"). É mais do que comum o fato de uma língua fazer distinções vocabulares que outras não fazem. Como tive a oportunidade de mencionar em outro artigo (Atravessando o Canal da Manga), o Espanhol designa com um único vocábulo (celo, celos) o que nós distribuímos por três: zelo, cio e ciúme. Invejamos o story do Inglês? Eles então devem ficar verdes diante de nosso ser e estar, distinção fundamental na vida e na Filosofia, que eles simplesmente desconhecem. Assim são as línguas humanas, na sua (im)perfeição.

Além disso, os amáveis folcloristas que defendiam estória pensavam apenas em distinguir "a História do Brasil das Histórias da Carochinha". Do ponto de vista lingüístico, erraram por todos os lados. Primeiro, erraram porque essa não é uma distinção útil, que justifique sua defesa. O português José Neves Henriques, o severo e consciencioso JNH do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (já falei sobre ele na seção de Links***), condena essa invenção "brasileira" (ele tem razão: é coisa nossa), tachando-a de "uma palermice, porque, até agora, nunca confundimos os vários significados de história. O contexto e a situação têm sido mais que suficientes para distinguirmos os vários significados". Certo o professor Henriques, errados os folcloristas: ninguém vai confundir a história de um país com a história do bicho-papão.

Segundo, erraram porque enxergavam apenas dois pólos bem definidos: a história que se refere ao passado e ao seu estudo, e a estória da narrativa, da fábula. A experiência nos diz que essas invasões de searas alheias geralmente pecam por um raciocínio simplista, reducionista. Quem mexe no que não entende, termina fazendo bobagem... e não deu outra. Nossos estudiosos não perceberam que a distinção sugerida, apetecível do ponto de vista deles, acabaria criando incertezas e hesitações em frases corriqueiras como "Deixa de histórias!"; "Essa já é outra história"; "Que história é essa?"; "Eu e ela temos uma velha história". Qual das duas formas usar? Por tão pouco benefício, por que assombrar ainda mais os que escrevem em Português? Faço questão de frisar "os que escrevem" - porque aqui, também, reside outra falha da proposta de João Ribeiro: as duas formas não seriam distinguíveis na fala, já que a realização da vogal "E" inicial de estória é geralmente /i/ (como em espada, esperto, etc.). Ambas seriam pronunciadas da mesma maneira: /istória/. E quantas outras palavras, derivadas de história, deveriam ser alteradas? Historieiro? Historiento? As historietas passariam a ser estorietas? Os aficcionados em quadrinhos passariam a usar EQ em vez do consagrado HQ? Como se vê, "muito trabalho por nada", como reza a comédia de Shakespeare.

De qualquer forma, o uso de estória poderia ter ficado confinado ao mundo do Folclore, onde talvez fosse de alguma utilidade. Afinal, não é incomum que certas áreas do pensamento postulem, para uso exclusivo, vocábulos novos ou variações fonológicas ou ortográficas de vocábulos antigos, no afã de obter maior precisão em seus conceitos. Isso se verifica, por exemplo, na Filosofia, na Lógica, na Lingüística, na Psicanálise (onde me chama a atenção a impressionante inquietação lingüística dos lacanianos). Como é natural, essas variantes vão fazer parte de um código específico, cujo emprego passa a ser indispensável para os especialistas dessa área, mas não entram no grande caudal da língua comum. A criação, a utilização e, muito seguidamente, a agonia e morte dessas formas são registradas em discretos dicionários especializados, convenientemente isolados do grande rebanho representado pelos dicionários de uso.

Infelizmente, como nos piores pesadelos dos ecologistas, estória rompeu as cercas de segurança, saiu do pequeno rincão do Folclore e invadiu nossas vidas. O responsável por isso foi João Guimarães Rosa (pudera não!). Como escreve meu mestre Celso Pedro Luft, com uma ponta de inesperada ironia, Rosa decidiu "glorificar, imortalizar a ausência do agá: Primeiras Estórias. Corriam os anos de 1962. Primeiras estórias ... todos os fãs do mineiro imortal ficaram absolutamente alucinados. E foi estória para cá, estória para lá, estória para todos os lados. Uma epidemia. Perdão, uma glória". Depois, em 1967 veio Tutaméia, com o subtítulo "Terceiras Estórias", e o póstumo Estas Estórias, publicado em 1969. Muito tem sido escrito sobre a inovação da linguagem rosiana; a sintaxe de seu narrador é, a meu ver, a criação literária do século. No entanto, sou obrigado a observar que, em termos não-literários, essa inovação é zero. Nenhuma das palavras montadas, deformadas ou inventadas por ele jamais será usada, a não ser por imitadores (que já andam escasseando...). É uma linguagem só dele; funciona admiravelmente no universo de sua obra, mas é seu instrumento pessoal, e nunca será nosso. Ouso dizer que a única influência rosiana no Português foi a divulgação desse equívoco que é estória. Tenho certeza de que Guimarães Rosa, místico de quatro costados, entenderia: deve ser vingança dos deuses da Língua.

sexta-feira, novembro 17

Na escola e no trabalho, tens amigos comó caralho!

Costuma-se dizer que nos tempos de escola é que era! O tempo para não fazer nada, o tempo para fazer tudo, o tempo para estar com os amigos…
E é precisamente nesta última parte que eu me quero reter. Amigos que se fazem na escola. Amigos que não se fazem no trabalho. Porque os amigos do trabalho não se escolhem. Mas também não se escolhem os amigos de escola. E os amigos de escola são nossos amigos e nós somos amigos deles. Acho que a única coisa que muda são as pessoas, não são as situações. Eu também já mudei. Costuma-se dizer que as pessoas evoluem… Será mesmo assim? Será que evoluir é mesmo ganhar a maturidade suficiente para dizer meia dúzia de coisas estúpidas a um colega e não ter o mínimo de ressentimentos, ou inversamente ouvir um gajo a chagar-nos a cabeça e manter a cabeça fria? Será que isso não é roubar-nos os instintos mais básicos e tornar-nos seres frios e calculistas? Costuma-se dizer: “…mas tem que ser…senão não sobrevives.” E eu sei que isso é verdade, mas não queria que fosse assim…

sexta-feira, novembro 10

Saudades dos tempos em que tinha tempo

Ontem aproveitei o facto de estar pelo escritório com pouco trabalho (pelo facto de não estar de momento envolvido em nenhum projecto) para sair um pouco mais cedo.
Estava a pensar ir para casa mas resolvi sentar-me numa esplanada em pleno centro de Lisboa a beber uma imperial.
Desci a Casal Ribeiro até ao Largo da Estefânia, e virei à esquerda para a Rua de Dona Estefânia.
Parei numa tasca tipicamente portuguesa, que tinha umas mesas verdes metálicas cá fora, numa rua de árvores grandes e frondosas, com imensa gente a subir e a descer.
Passaram velhotes, passaram casais jovens, passaram grupos de amigos, saíram pessoas de carros que lhes tinham dado boleia, passou um casal muçulmano de certeza recém aterrado em Lisboa, passaram para cima e para baixo dois jovens a acartar pufs e cadeiras em aparente mudança de casa. Enfim, uma montra de histórias ali a desenrolar-se à minha frente.
Já a meio da minha segunda imperial, juntou-se à mesa do lado um grupo de 4 amigos, 3 rapazes e uma rapariga, que estavam sempre na conversa. A partir daí, fiquei deliciado a ouvir a conversa deles.
Aquelas conversas despretensiosas de quem não tem muitas preocupações e está a rir de 10 em 10 minutos…
Apenas um deles era de Lisboa, ao que percebi, e os outros tinham vindo todos fazer a faculdade cá.
Tinham todos algum sotaque e a certa altura começaram a falar de que existia a ideia generalizada de que o sotaque em Lisboa era o sotaque padrão e que os lisboetas achavam que não tinha sotaque. Mas tinham!!! Andavam lá num bate boca e vinha a gargalhada generalizada 5 minutos depois.
Estava mesmo ao pé deles, mas devia parecer a 2 mundos de distância porque olhavam para mim com alguma reverência pelo facto de estar engravatado.
Mal sabiam eles que me estavam a servir a refeição perfeita para acompanhar aquelas imperiais. Uma refeição de boa disposição e juventude, cabeça limpa e desanuviada, a sensação de despreocupação.